World A Reggae – Lucky Dube: sensibilidade, militância e voz

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Passados sete anos e cinco meses do assassinato do maior expoente do reggae africano (comparável apenas a Alpha Blondy em termos de representatividade), ainda elabora-se o luto da perda trágica de um dos mais importantes críticos do apartheid, da voz grave e de falsetes poderosos, dos teclados característicos de sua banda (The Slaves) e da presença de palco que costumava hipnotizar grandes plateias. É tempo de lembrar e de prestar homenagem a ele, Lucky Philip Dube – ou simplesmente Lucky Dube, um grande artista

Nascido na pequena cidade de Ermelo (África do Sul) no dia 03 de Agosto de 1964, Lucky Dube foi abandonado pela mãe ainda muito novo e foi filho de pais separados antes mesmo de nascer. Porém, não lhe faltaria uma figura materna. O exercício da maternagem veio a ser realizado por Sarah Khanyi, sua avó materna e responsável pelo registro do nome Lucky (literalmente a ideia de um garoto de sorte, muito provavelmente em função de não ter perdido aquilo que a psicanálise considera como a condição sine qua non para a constituição do indivíduo, isto é, um primeiro vínculo fundante e que garante segurança estrutural à criança) – ou seja, devemos parte da grandeza de Lucky Dube a esta senhora que o acolheu, juntamente com seus irmãos (Thandi e Patrick), e de quem o astro se aproxima com carinho no vídeo extraído do documentário “Lucky Dube – The Man & The Music” (assista abaixo).

Dramas familiares carregados de emotividade sempre inspiraram as letras de Lucky Dube. Seria possível destacar o caso da belíssima canção do vídeo acima – Oh, My Son (I’m Sorry) – ou ainda a tocante Hold On, do álbum House Of Exile (ouça a faixa abaixo). Ainda criança, Lucky Dube foi jardineiro e ajudou a garantir a renda mínima da família sem, no entanto, abrir mão do direito à escolarização. Foi na escola que nasceu seu interesse por literatura e onde pôde exercer o trabalho de assistente de biblioteca (à época, o garoto tinha apenas nove anos de idade). O acesso aos livros também o aproximou, um pouco mais tarde, dos princípios do rastafarianismo, a partir dos quais viria a extrair inspiração para suas lutas e ideais a partir da música.

O primeiro disco solo | foto: reprodução internet
O primeiro disco solo

No entanto, antes de aprofundar-se nos códigos do rastafarianismo, Lucky Dube viveria, no auge da adolescência, suas primeiras experiências com música a partir da relação com colegas de escola, com os quais viria a formar a Skyway Band. Lucky Dube viria a dedicar-se ao mbaqanga, estilo tipicamente sul-africano, de raízes rurais zulu, nascido no início da década de 1960. Formou com o primo (Richard Siluma) e outros colegas o grupo The Love Brothers (entre o final da década de 70 e o início da década de 80). Após esse período, gravou um disco solo de grande sucesso, intitulado Lengane Ngeyethu. Mais tarde, assumiria a frente do nome Lucky Dube And The Supersoul, mas foi incentivado por Dave Segal (que posteriormente tornou-se seu engenheiro de som) a investir em carreira solo.

Ainda na primeira metade da década de 1980, Dube abraça definitivamente o reggae, marcado pelas influências de Peter Tosh (evidente inclusive no timbre de voz), Jimmy Cliff e Bob Marley. Acompanhado pela banda The Slaves, Dube identificou no reggae o grande instrumento para a transmissão de suas mensagens de combate ao racismo, de união e integração da África do Sul dominada pelo regime do apartheid (separação / segregação racial) no período que se estende de 1948 a 1994, com a intervenção de Nelson Mandela – a quem Dube viria a homenagear com a música House Of Exile (do álbum homônimo, lançado no início dos anos 90). Mas antes desse disco emblemático, Dube trabalhou muito no intuito do que Bob Marley pedia em Africa Unite.

Lucky Dube: reggae como instrumento para a transmissão de mensagens contra o racismo e o sistema de apartheid na África do Sul | foto: reprodução internet
Lucky Dube: reggae como instrumento para a transmissão de mensagens contra o racismo e o sistema de apartheid na África do Sul

O primeiro álbum reggae de Lucky Dube (curiosamente o primeiro álbum de reggae gravado na África do Sul, em 1984), intitulado Rastas Never Dies, não foi sucesso comercial (pouco mais de 4.000 discos vendidos; portanto um número pouco expressivo, principalmente em se tratando de um artista promissor que estava começando a projetar-se no cenário musical africano e que tinha suas pretensões de levar seu trabalho para além da África. Lucky Dube já havia atingido a marca dos 30.000 discos vendidos com um álbum de seu período mbaqanga). Mesmo com um boicote ao Rastas Never Dies (em função de seu conteúdo notadamente político e de crítica ao racismo / algo semelhante ocorreu no Brasil, em 1992, com o álbum Negro no Poder, da banda Cidade Negra), Lucky Dube insistia no reggae e em seu potencial crítico-emancipatório.

Lançou em 1985 o álbum Think About The Children (destaques para a faixa-título, I Wanna Take You To Jamaica e I’ve Got Jah), em 1986 o álbum Slave (destaques para a faixa-título, que obviamente não se reduz à escravidão do alcoolismo, tal como o vídeo-clipe pode sugerir – trata-se, é claro, de uma estratégia para driblar a censura -, Let Jah Be Praised, que não chega a ser a adaptação para a clássica de Peter Tosh (apesar de seu título), I’ve Got You Babe e Back To My Roots, esta última, diga-se de passagem, bastante apropriada para se considerar o atual cenário do reggae na própria Jamaica (leia Great Times Are Coming. Ou: Big Tings a Gwaan).

Prisoner ultrapassou a marca de 1 milhão de cópias vendidas| foto: reprodução internet
Prisoner ultrapassou a marca de 1 milhão de cópias vendidas

Quando a carreira de Lucky Dube se constitui como a carreira de um artista de reggae (ou seja, na segunda metade da década de 1980), o álbum Rastas Never Dies é relançado pela demanda do público que começa a expandir-se consideravelmente para além da África do Sul, é seguido do lançamento de Together As One (1988 – destaques para a faixa-título e Truth In The World) e, em 1989, é lançado o álbum mais bem-sucedido da história de DubePrisoner. Com apenas cinco dias de lançamento, o disco já era platina duplo, trazia na tracklist grandes acertos como Remember Me e Reggae Strong. Prisoner ultrapassa a marca de 1.000.000 de discos vendidos e consolida a carreira de Lucky Dube como astro do reggae internacional. No início da década de 1990, o cantor lança Captured Live (platina novamente) e toca no Reggae Sunsplash (Jamaica).

Ainda no início dos 90, Dube lança o belíssimo House Of Exile (destaques para Crazy World, It’s Not Easy, Hold On, Mickey Mouse Freedom, Group Areas Act, Running Falling e a faixa-título); o cantor segue tocando questões da opressão e da desigualdade, mas também abre um espaço a dramas pessoais, relacionais e familiares. Victims (1993) também integra a lista de discos bem-sucedidos de Lucky Dube. Músicas como Different Colours/One People – com uma introdução a la Super Mario Bros. – e a faixa-título, Victims (ouça abaixo), não deixam sombra de dúvida sobre a habilidade vocal surpreendente do sul-africano que assina contrato com a Motown Record Company para o lançamento do disco Trinity (1995), que, por sua vez, traz pérolas tais como Feel Irie, Big Boys Don’t Cry, God Bless The Women e Rastaman Prayer.

Após a morte trágica, parentes, amigos e fãs prestam uma última homenagem ao artista | foto: reprodução internet
Após a morte trágica, parentes, amigos e fãs prestam uma última homenagem ao artista

Em 1996, a primeira coletânea; intitulado Serious Reggae Business (ouça abaixo, na íntegra), o disco reuniria os maiores sucessos do cantor sem qualquer anúncio de término da carreira, já que ainda seriam lançados Taxman, de 1997 (destaques para Guns & Roses, Release Me, Is This The Way e a regravação de I Want To Know What Love Is, clássico de Michael Jones) e The Way It Is, de 1999 (destaques para a faixa-título, Crying Games, You Stand Alone e Till You Lose It All – com violinos na introdução).

Em 2001, mais uma coletânea de hits – The Rough Guide To Lucky Dube – e o sucesso seguiria os três últimos álbuns: Soul Taker (2001), The Other Side (2003 / destaque para Ding Ding Licky Licky Bong, com guitarras que remetem a Alagados, d’Os Paralamas do Sucesso) e Respect, de 2007 (destaques para a faixa-título e para a belíssima Celebrate Life. Mas (infelizmente) Dube não pôde celebrar a vida por muito tempo.

No momento de sua carreira em que dividia palcos com artistas do calibre de Sinéad O’Connor, Peter Gabriel e Sting e em que acabava de apresentar-se no festival Live 8 (em Joanesburgo), o cantor deparou-se com a violência de um assalto que lhe custou a vida. A cena brutal acontece na frente de dois dos filhos do cantor, em 18 de Outubro de 2007. Três tiros matam um grande homem e artista de 43 anos de idade. Os assassinos de Lucky Dube foram condenados à prisão perpétua. O astro do reggae sul-africano deixou a esposa Zanele, sete filhos (dentre os filhos, a cantora Nkulee Dube), um acervo de lindas canções e uma legião de admiradores pelo mundo.

Ouça a coletânea “Serious Reggae Business”, com o melhor de Lucky Dube:

 

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Ricardo Brasil

Por Ricardo Brasil

Ricardo Brasil é psicólogo e admirador da cultura jamaicana desde a sua adolescência. A partir dos anos 2000, passou a produzir conteúdo sobre Reggae para veículos de comunicação (sites e revistas) dedicados ao gênero.