Cidade Negra: reggae brasileiro tipo exportação

foto: reprodução internet

Precursores do reggae no país e primeiro grupo brasileiro do gênero a atingir projeção nacional e internacional, o Cidade Negra trouxe inegáveis contribuições no sentido de uma afirmação da cultura reggae no Brasil e em outros países do mundo. Ao longo de 28 anos de carreira, o grupo acumulou hits, conquistou uma legião de fãs e investiu como nenhum outro na interlocução Brasil-Jamaica.

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Cidade Negra em sua formação atual: Bino, Toni Garrido e Lazão.

Baixada Fluminense. Rio de Janeiro. 1986. Subia ao palco, pela primeira vez, a banda Lumiar. O grupo, formado por quatro admiradores do reggae (Bernardo Rangel – Ras Bernardo, Da Gama, Bino Farias e Lazão), logo viria a ter de mudar o nome da banda (em função do nome Lumiar já ter sido registrado, à época, por outra banda). Bino Farias (baixista) recebeu em sonho o nome Cidade Negra, referência ao fato de o Brasil ser a nação com a segunda maior população negra do mundo. O nome foi imediatamente aceito e, no decorrer da segunda metade dos anos 80, a banda já se apresentava como Cidade Negra, a primeira representante do reggae no Brasil que atingiu projeção nacional e internacional.

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Capa de “Lute Para Viver” (1991)

Ainda no final da década de 1980, um documentário da BBC de Londres sobre a cultura local na Baixada Fluminense viria a jogar holofote na arte do quarteto de Belford Roxo e tal destaque resultaria num contrato com uma grande gravadora e no lançamento do primeiro disco (“Lute Para Viver”, 1991). O disco pode e deve ser reconhecido na qualidade de primeiro álbum de uma banda brasileira de reggae – trouxe o primeiro grande hit da banda (Falar a Verdade) e o luxo de uma participação especial do ídolo jamaicano Jimmy Cliff, na faixa Mensagem. “Lute Para Viver” trazia ainda uma versão digna de respeito para o clássico Jah Jah Made Us For A Purpose (Winston Foster – mais conhecido como Yellowman). Na versão do Cidade Negra, a música, cantada pelo baterista Lazão, foi chamada Nada Mudou (ouça abaixo).

Em 1992, a banda lança “Negro no Poder”, um álbum de inegável potência política progressista e de uma sonoridade facilmente comparável à fase de maior prestígio da banda jamaicana Black Uhuru (a título de exemplos, ouça a faixa Conciliação, abaixo, além de Sai-Lário e Na Frente da TV). “Negro no Poder” viria a ser o último disco com Ras Bernardo na posição de vocalista do Cidade.

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“Sobre Todas as Forças” (1994), já com Toni Garrido nos vocais: o disco é considerado uma coletânea de sucessos da banda.

O terceiro álbum, “Sobre Todas As Forças” (1994), situa a entrada de Toni Garrido para a banda, trazendo o tempero soul com o qual o Cidade já flertava desde o início de sua formação. No entanto, esse álbum – que pode ser tomado como uma coletânea de sucessos da banda –, seguiria marcando compromisso com a “música que bate sem machucar”. Querem Meu Sangue, versão de Nando Reis para a clássica The Harder They Come (eternizada por Jimmy Cliff) é uma das faixas que se destacam no disco que ainda presenteia o público (de reggae, mas não só) com Casa (mais um ponto de referência  à banda Black Uhuru), Minha Irmã, Doutor, Mucama, Luta de Classes e os grandes sucessos radiofônicos A Sombra da Maldade, Pensamento (composição do período de Ras Bernardo), Onde Você Mora? (composta por Nando Reis e Marisa Monte) e a emblemática Downtown, que conta com a participação de Shabba Ranks, gigante do dancehall jamaicano. A música é a narrativa das viagens de uma banda de reggae que tem o privilégio de encontrar-se com ídolos do tamanho de Ziggy Marley e Jimmy Cliff. Uma banda credenciada a apresentar-se no Reggae Sunsplash Festival (Montego Bay, Jamaica) na qualidade de primeira representante latino-americana a tocar nesse importantíssimo festival. Downtown alude, portanto, à ambição maior de toda banda de reggae: expor sua música na Jamaica de Shabba Ranks, Burning Spear, Wailing Souls, Big Youth e Cocotea.

A carreira do Cidade Negra se consolida definitivamente com o disco “O Erê” (1996). Nele, os fãs da banda puderam constatar a maturidade do ofício artístico dos cariocas em canções como O Erê [faixa-título que presta homenagem, em yorubá, à criança (em geral) e, particularmente, às crianças que passam a compor as famílias de integrantes da banda]. É um disco, aliás, marcado pelo sentimento de família, como se pode perceber no videoclipe de Firmamento, o grande hit do disco, que é, por sua vez, mais uma versão da banda para uma música de Mr. Yellowman, o rei do dancehall: Wrong Girl To Play With (ouça as duas versões abaixo). Por falar em versão, há mais uma ótima versão neste álbum. Trata-se de Simples Viagem – a original é intitulada Sitting And Watching (canção de Dennis Brown, “príncipe do reggae”). E, por falar em dancehall, ainda há de se destacar Realidade Virtual, mais um grande sucesso que, à época da gravação, contou com a participação da cantora jamaicana Patra e rendeu um belo videoclipe, indicado a diversos prêmios. “O Erê” traria outras pérolas, como Jah Vai Providenciar e a participação de Inner Circle em Free.


A história vitoriosa do Cidade Negra seguiu com “Quanto Mais Curtido Melhor” (1998), disco que explora a MPB sem perder a tônica do reggae (como pode ser facilmente constatado em faixas como Rio Pro Mar, O Vacilão e a versão para Nos Barracos da Cidade, de Gilberto Gil). Grandes acertos como Já Foi, Sábado à Noite, A Estrada e A Cor do Sol também fazem parte da tracklist deste que é um dos trabalhos mais bem produzidos do quarteto. No ano seguinte, os fãs foram surpreendidos (leia-se presenteados) com um álbum duplo. “Hits” é uma compilação de grandes sucessos (com a inclusão de Eu Também Quero Beijar, de Pepeu Gomes) e o álbum de “Dubs”, que merece um parágrafo à parte por se tratar de um dos trabalhos que talvez mais explicitem o potencial e prestígio da banda junto a nomes consagrados do reggae mundial.

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O Cidade Negra foi considerado pela crítica dos anos 90 como sendo uma “fábrica de hits” e passou a arrastar multidões para seus shows.

Reggae em seu estado mais lisérgico e mais psicodélico possível. Eis uma boa definição do dub. Num momento em que, no Brasil, pouco se falava em dub, o Cidade Negra lança um disco com versões dub para catorze músicas de seu repertório e, para tanto, conta com a participação de doutores em reggae e dub, como Augustus Pablo, Steel Pulse, Sly & Robbie, Aswad, Lee Perry e Mad Professor; além de ótimos dubs produzidos por Paul Ralphes, Nelson Meirelles, Liminha e uma faixa trabalhada pela “cozinha” da casa, Lazão e Bino. Um disco obrigatório para qualquer fã de música jamaicana. Ouça abaixo a versão dub para a faixa Realidade Virtual.

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O álbum “Direto” (2006), com participação de Toni Garrido e Da Gama, que sairiam do grupo em seguida.

Marcando a passagem para o novo milênio, “Enquanto O Mundo Gira” (2000) vem com guitarras e destaques como Na Moral, Cidade Partida e A Flecha e o Vulcão (esta última teve videoclipe filmado na Jamaica, em lugares emblemáticos para os amantes do reggae, como o Trenchtown Culture Yard, por exemplo). Em 2002, um álbum “Acústico” com versões desplugadas de grandes clássicos, os lançamentos de Berlim e Girassol, a presença (mais que especial) de Gilberto Gil e mais uma excelente versão – dessa vez, para a canção de Chuck Berry na consagrada leitura de Peter Tosh – Johnny B. Good. Em 2004, “Perto de Deus”, disco mixado na Jamaica, viria a retomar um reggae clássico, recheado de dub, com participação do jamaicano Anthony B na faixa-título e uma versão para Concrete Jungle (Bob Marley & The Wailers), além dos sopros que aludem a Burning Spear na música Dia Livre. Na sequência, dois álbuns Ao Vivo: “Direto” (2006) e “Diversão” (2008), este último com grandes acertos da música brasileira gravados em releitura jamaicana.

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Alexandre Massau, entre Bino Farias (à esquerda) e Lazão, esteve à frente dos vocais para o lançamento do disco “Que Assim Seja” (2010).

Com a saída de Toni Garrido (voz) e Da Gama (guitarra), Bino e Lazão lançam, em 2010, o disco “Que Assim Seja”, com novo vocalista, o mineiro Alexandre Massau. O disco traria a participação do DJ/toaster jamaicano Ranking Joe em Na Onda Do Jornal / Espera Amor (citação da parceria dos bambas Agepê e Canário). Toni Garrido volta ao microfone do Cidade Negra em janeiro de 2011 para uma série de shows e o trio (Toni, Bino e Lazão) encaram, mais uma vez, o estúdio e mais uma ida à Jamaica para a mixagem, entre 2012 e 2013, do mais recente álbum de inéditas da banda. Intitulado “Hei, Afro!” numa alusão à diáspora africana, o disco é um passeio nos mais diversos tipos de reggae: da sonoridade tradicional de Diamantes ao dancehall em Don’t Wait.

Atualmente, o grupo está em turnê pelo país em comemoração aos 20 anos de lançamento do álbum “Sobre Todas as Forças” (1994). Seja pelo disco, seja pela longa e vitoriosa carreira até aqui, há motivos de sobra para comemorar.

Ouça a coletânea “Hits”, com os maiores sucessos do Cidade Negra:

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Ricardo Brasil

Por Ricardo Brasil

Ricardo Brasil é psicólogo e admirador da cultura jamaicana desde a sua adolescência. A partir dos anos 2000, passou a produzir conteúdo sobre Reggae para veículos de comunicação (sites e revistas) dedicados ao gênero.